sábado, 23 de julho de 2016

Não Verás País Nenhum - Ignácio de Loyola Brandão

“Não Verás País Nenhum”, de Ignácio de Loyola Brandão foi dado á estampa em 1981 o que o torna ainda mais impressionante.
Estamos em S. Paulo, num Brasil dantesco consequência de uma pilhagem total dos recursos por parte dos diversos grupos dirigentes.
Álvaro Souza, ex-professor de história, vive acomodado a esse mundo, num prédio de apartamentos com a sua mulher Adelaide. Tem um casamento e uma vida rotineira. Com a sua ficha especial de circulação para o S-758 dirige-se todos os dias para o seu burocrático e surrealista emprego onde dezenas conferem intermináveis de números debitados pelos computadores. Almoça na lanchonete a que está adstrito, urina nos Postos Apropriados, onde a urina é reciclada em água para consumo público.
Souza vive a sua vida burocrática num regime totalitário, dirigido pelo Esquema ( geral e estadual) que está ao serviço dos Militecnos instalados nos bancos, ministérios e empresas e apoiado nas forças repressivas do Novo Exército e Civiltares.
É a época que se seguiu á Era da Grande Locupletação, num Brasil que destruiu a Amazónia e a transformou num imenso deserto – a 9º Maravilha do Mundo. S. Paulo é uma cidade superpovoada, dividida em sectores estanques, com limitação de movimentos, com escassez de água e comida, sob um clima abrasador onde pululam as mais diversas doenças.
Despedido do emprego, Souza inicia um novo percurso por um submundo que desconhecia. Envolvido pelo seu sobrinho – capitão no Novo Exército – em esquemas de corrupção e lutas entre os diversos grupos no poder, abandonado pela mulher Adelaide, expulso do apartamento onde habitava, a sua vida rotineira termina para iniciar uma luta pela sobrevivência ainda mais desesperada. Nessa nova vida encontra Elisa, uma mulher que á a antítese de Adelaide e que vive intensamente cada segundo de existência nos interstícios desse submundo.
Álvaro de Souza é um personagem joyciano que percorre uma S. Paulo dantesca e onde vai enfrentar a sua responsabilidade individual que no passado levou á construção da sociedade apocalíptica onde vive, caminhando para uma nova luz que descobre em si próprio.
É uma obra admirável, uma ilustração dos Estados falhados preconizados por Robert K. Kaplan no seu “The coming anarchy”. Pleno de tensão e melancolia somos surpreendidos a cada página por expressões como A Casa dos Vidros de Água, o Distrito de Compras, o Ministério das Obras Faraónicas Populares, o Tempo das Crianças Exterminadas, os Distritos Circulantes, o Bairro dos Ministros Embriagados que graficamente ilustram como o poder construiu esta demoníaca sociedade.
É uma das grandes obras da literatura de língua portuguesa agora reeditada pela Babel/Uliseia. Quando chegamos á última página surge imediatamente a vontade de a reler.
Países ditos irmãos, Portugal e Brasil vivem de costas voltadas no que toca á partilha da literatura publicada nos dois países. Temos as livrarias cheias de literatura internacional mas por razões que escapam ao comum dos mortais, a literatura brasileira contemporânea raramente nos alcança. Felizmente que episodicamente nos chegam obras como este “Não Verás País Nenhum” de Ignácio de Loyola Brandão. José M. da Costa


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Nessa narração, construída em 1981, o autor nos apresenta o Brasil em um futuro indeterminado dominado por um governo medíocre (chamado de Esquema), onde a Amazônia virou um deserto, as metrópoles sofrem com a falta de árvores e com o calor intenso; não há comida, água ou moradia para todas as pessoas – que estão divididas em castas e os mais pobres sobrevivem do lixo acumulado ao redor das cidades.

Nesse país, as cidades estão super lotadas, há mãos nas calçadas indicando a direção que se deve caminhar (igual as mãos existentes nas ruas). As manifestações populares são reprimidas com violência, assim como muitas palavras e expressões que são proíbidas e condenadas a qualquer momento, pois um fiscal do governo pode estar ao seu lado. O povo segue naquela vida de gado.

Uma catástrofe social, não é mesmo? Na orelha do livro temos uma extensa explicação sobre a composição da narrativa, destaco essa passagem que diz muito sobre o desenrolar da história:

“Não Verás País Nenhum traz uma história linear, que não coloca qualquer dificuldade ou qualquer experiência que possa assustar leitores menos dispostos a decifrar possíveis enigmas. Na verdade, fica até difícil, para quem abrir a primeira página, deixar de ir adiante. O livro pega como visgo, seja pelo interesse e importância dos assuntos tratados, seja pela forma como o escritor fala, neste caso, da extinção das condições de vida, das relações entre poder e povo, dos dramas pessoais.”

Apesar de o livro ter sido escrito no início da década de 80, o tema tratado é extremamente atual: aquecimento global, desigualdade social, governos tiranos, etc. vemos isso quase todo dia no jornal. Porém a narrativa, por muitas vezes, é lenta e um pouco maçante. Um ponto curioso é a divisão dos capítulos, estes estão separados como se fossem episódios de uma série e estão identificados com títulos que praticamente são resumos do que vem a seguir; esse ponto me lembrou muito o livro Dom Quixote, que também tem em seus capítulos títulos que dizem o que vai acontecer (vocês lembram como é? Algo do tipo “De como Dom Quixote enfrentou os moinhos de vento…”). Dois exemplos para vocês verem:


Capítulo 2: Coçando a palma da mão (alergia?), Souza observa com fastioa a operação dos civiltares para dominar bandidos com balas catalépticas.

Capítulo 4: Algumas orientações a respeito da organização que o Esquema estabeleceu na cidade colocando ordem e progresso nas ruas.

Esse é um livro extremamente pessimista, mas que alerta sobre o desastre ambiental/social que pode ocorrer se as pessoas não tiverem educação adequada, porém as condições para que o povo seja instruído corretamente está nas mãos de governantes que só sabem olhar para o próprio umbigo – e Brasília dá um olá para a galera – e pouco ou nada se importam com o bem-estar social. E nesse contexto (do livro), as pessoas vão se amontando em acampamentos paupérrimos, tendo seu direito de ir e vir reprimido, reciclando urina para beber, pois a aguá era um artigo de luxo e as fichas/cotas para ela eram escassas…

Oh, wait!

Sabe o que isso me lembrou? Há uns anos, algumas regiões do Brasil sofreram com uma enorme escassez de chuvas, o que ocasionou grande preocupação com falta de energia, já que as hidroelétricas estavam operando em seu nível mais baixo. Para evitar que houvesse um grande apagão, o governo decidiu impor aos cidadãos “cotas de energia”; cada casa tinha sua cota e se ela fosse ultrapassada os moradores pagariam uma taxa extra, uma espécie de multa.

A vida imita a arte ou a arte imita a vida?


Mafítico. O fedor vem dos cadáveres, do lixo e excrementos que se amontoam além dos Círculos Oficiais Permitidos, para lá dos Acampamentos Paupérrimos. Que não me ouçam designar tais regiões pelos apelidos populars. Mal sei o que me pode acontecer. Isolamento, acho.

Tentaram tudo para eliminar esse cheiro de morte e decomposição que nos agonia continuamente. Será que tentaram? Nada consegiram. Os caminhões, alegremente pintados em amarelo e verde, despejam mortos, noite e dia. Sabemos, porque tais coisas sempre se sabem. É assim.

[…] O lixo forma setenta e sete colinas que ondulam, habitadas, todas. E o sol, violento demais, corrói e apodrece a carne, em poucas horas.

O cheiro dos mortos se mistura ao dos inseticidas impotentes e aos formóis. […] Atravessa as máscaras obrigatórias, resseca a boca, os olhos lacrimejam, racha a pele. […]

Forma-se uma atmosfera pestilencial que uma bateria de ventiladores possantes procura inutilmente expulsar. Para longe dos limites do oikoumenê, palavra que os sociólogos, ociosos, recuperaram da antiguidade, a fim de designar o espaço exíguo em que vivemos. Vivemos? (p.11)

https://enlatadosliterarios.wordpress.com/

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Romance apocalíptico, no sentido de contar uma história do fim dos tempos, Não Verás País Nenhum se desenrola em um futuro não determinado, mas cada vez mais presente na realidade do brasileiro. Uma época terrível, na qual a Amazônia se transformou em um deserto sem nenhuma árvore; onde "O lixo forma setenta e sete colinas que ondulam, habitadas, todas. E o sol, violento demais, corrói e apodrece a carne em poucas horas"; onde a carência de água impõe a reciclagem da urina, bebida pelas pessoas. A administração do país chegou ao caos. Governantes medíocres, cada vez mais afastados do povo, interessados apenas em vantagens pessoais, uma polícia corrupta e assustadora.

No meio desse mundo sombrio, uma história de amor, na qual o autor sugere que nem tudo está perdido, pelo menos enquanto o bicho-homem alimentar esperanças e for capaz de gestos de generosidade.

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