quarta-feira, 8 de novembro de 2017

A Elite do Atraso - Jessé Souza






"O problema do Brasil é a elite econômica dele", analisa escritor e sociólogo

A obra, lançada no início de outubro de 2017 , trata de questões políticas e econômicas e tenta mostrar que a corrupção não é o principal problema do país. "A nossa elite é a do saque da rapina. Vendem nosso petróleo, nossa água. O problema do Brasil é a elite econômica dele", disse.

"Na sociedade moderna, a fonte do poder real está no mercado. O mercado tem a ver com o controle sobre preços, juros e etc. Conversei com os melhores especialistas sobre divida pública. A dívida pública é onde está a corrupção. As pessoas acham que a dívida pública do Brasil é muito grande e quem fica com dinheiro da dívida são os bancos. Ninguém fala disso", acrescentou.

O escritor classificou o funcionamento da sociedade como "complexo" e disse ainda que a Operação Lava Jato "vai dar em nada". "Os ricos não pagam impostos. O mercado brasileiro comprou a imprensa, comprou a política. Aposto com quem quiser que a Lava Jato não vai dar em nada. Ela nasceu para derrubar o PT, para derrubar um governo legitimamente eleito. O sistema político entre nós foi montado para ser corrupto. Todos os partidos são comprados em alguma medida", concluiu.
Metro1


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Numa época em que a questão das desigualdades racial e social estão, mais do que nunca, no centro de cena – dos grandes veículos de comunicação aos comentários nas redes sociais e até mesmo nas conversas das mesas de bar, onde todos parecem ter uma ideia muito bem definida do que é capaz de construir um país ideal –, o sociólogo Jessé Souza escancara o pacto dos donos do poder para perpetuar uma sociedade cruel forjada na escravidão. Esse é o pilar de sustentação de nossa elite, A Elite do Atraso. Depois da polêmica aberta pela obra A Tolice da Inteligência Brasileira e da contundência exposta em A Radiografia do Golpe, o autor apresenta obra surpreendente, forte, inovadora e crítica na essência, com um texto aguerrido e acessível. A Elite do Atraso é um livro para ser apoiado, debatido ou questionado – mas será impossível reagir de maneira indiferente à leitura contundente de Jessé Souza a ideias difundidas na academia e na mídia.
Saraiva


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Nada mais falso que atribuir as mazelas e desigualdades do Brasil a uma herança cultural portuguesa, como gostam de repetir certos intelectuais brasileiros: “uma intelectualidade que diz besteiras como a de que viemos dos portugueses, que trata de uma herança ibérica maldita, de corruptos, e de uma autoestima de vira-lata, uma loucura repetida na sociedade nas escolas e na mídia”, dispara o sociólogo e cientista político Jessé Souza, que recém-lançou o livro A elite do atraso – da escravidão à Lava Jato. A obra discute a importância da escravidão na formação da sociedade brasileira e na perpetuação do ódio e da indiferença que permeiam as relações sociais e forma uma espécie de trilogia com os anteriores A ralé brasileira (2009) e A tolice da inteligência brasileira (2015).

Nesta entrevista, o ex-presidente do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea) discute os conceitos abordados no seu novo livro, analisa a conjuntura política, o golpe, e compara a realidade brasileira com a de outros países. Para Souza, as elites brasileiras passaram a perna na classe média com um discurso anticorrupção para poder se apropriar das riquezas do país: “nossa elite montou uma relação de convencimento com a classe média para saquear a riqueza de todas as classes ao máximo”.


Souza: A elite brasileira não tem projeto de país e quer o saque imediato. Foto Fabio Rodrigues Pozzebom/ABr

Extra Classe – Qual a relação do contexto atual com as origens da sociedade brasileira que o senhor aborda no seu mais recente livro A Elite do Atraso: da Escravidão a Lava Jato?
Jessé Souza – Tento discutir a conjuntura atual, mas lançando uma luz histórica, uma genealogia. Isto é extremamente importante porque a imagem do Brasil que temos hoje, que nos é repassada nas escolas, em livros, jornais e outros meios, é uma imagem falsa. Ela afirma que viemos de Portugal e que, por conta disto, somos patrimonialistas, temos uma tendência à desonestidade e a corrupção. É aquela concepção de vira-lata do brasileiro, moldada por intelectuais brasileiros, o que é algo impressionante. Que outros moldem essa imagem, porque a partir dela poderão, por exemplo, receber a Petrobras a preço de banana, é até compreensível, embora lamentável. Agora, que nossos intelectuais montem uma imagem que nos limita e humilha, isso é inadmissível.

EC – Da parte de quem pensa o país é sempre colocada a relação entre o patrimonialismo e o clientelismo existentes e a ‘herança portuguesa’, sua influência sobre como nos desenvolvemos como nação. É um equívoco?
Souza – Exatamente. Não havia escravidão em Portugal. Nós somos filhos de instituições. Basta o leitor pensar na concepção da família. A família muda os filhos, características de pai e mãe. Você observa comportamentos, questões como o andar… Mas não é só isso. Existe a visão de mundo. Somos moldados por instituições: a família, depois a escola e assim por diante. E a instituição mais importante que temos no Brasil é a escravidão. Então como fica esta história do ‘viemos de Portugal’ para explicar determinadas questões se não havia escravidão lá? Essa é uma explicação fajuta, marota, sem pé e nem cabeça, e na qual acreditamos. É uma explicação relacionada a algo extremamente importante, porque determina que nosso mal é a corrupção e que ela está na política e no Estado. E, assim, garante invisibilidade para a real corrupção, que nos dias de hoje é a montada pelo mercado, pelos oligopólios e atravessadores. Isto faz com que a base real do poder fique invisível.

EC – Qual é essa base real do poder?
Souza – Faço uma reconstrução histórica, repondo a questão da verdadeira elite, que faz o assalto real à população brasileira, e que está no mercado. Porque, no fundo, se fizermos uma analogia entre esta corrupção que está tão na moda hoje em dia e o narcotráfico, os políticos desempenham o papel dos ‘aviõezinhos’. Eles não são os chefes, eles ficam é com as sobras. Quem realmente assalta a população são os oligopólios que impõem preços e os atravessadores financeiros que impõem a taxa de juros mais alta do mundo, embutida em tudo o que compramos. O nosso dinheiro, o de todas as classes, vai para essa pequena elite financeira. A construção real é esta.

EC – O senhor defende a alteração dos que são apontados como fatores originários da formação do país? A base sobre a qual o país se estabeleceu como tal é a escravidão, é isso?
Souza – Sim, exatamente. A transmissão cultural ela não se dá biologicamente. O leigo tem essa figura: “Ah, eu sou filho de italianos, então eu sou italiano.” Ora, isso depende. No caso de uma sociedade na qual a escravidão tem papel determinante, uma parte desta sociedade considera que os escravos não são gente, não os considera humanos, não se identifica com o sofrimento de pessoas que já define como sendo de outra espécie, subgente, como algo a ser explorado a preço vil. É o que fundamenta uma sociedade de senhores e escravos. Como nunca vimos a escravidão como nossa fonte, nossa semente, nossa real questão, falamos dela, mas não fazemos a crítica aprofundada. Como consideramos que ‘viemos de Portugal’, não refletimos efetivamente sobre esta questão. E o passado sobre o qual não há reflexão está condenado a se repetir. De outras formas, mas se repete. No Brasil, a forma como mais se repetiu foi a do ódio aos pobres. Não há da parte da classe média uma identificação. Existe aí uma certa burrice porque, quando você qualifica os mais pobres, eles consomem mais, eles produzem mais. Tivemos um exemplo de que isso funciona no passado recente, de uma expansão do mercado que não havia sido feita antes. Mas aí vem a necessidade de distinção, de humilhar, de parte da sociedade precisar se sentir superior. Somos um Estado no qual existem políticas formais deste ódio aos pobres. A matança dos pobres, as chacinas, verdadeiros absurdos, uma parte expressiva da classe média aplaude. O que isso mostra? Um ódio típico de regimes escravocratas. O que procurei fazer foi recuperar isso e mostrar como é importante até hoje.

EC – Qual a relação entre esta origem escravocrata e a indignação contra a corrupção e os escândalos da política?
Souza – Vamos pensar no que houve no ano passado, que foi feito um golpe por conta de uma indignação contra a corrupção. Isto hoje não entra mais na cabeça de ninguém. Porque a corrupção está se mostrando em outros partidos, em outros lugares, muito maior do que aconteceu em 2016, e ninguém está se indignando com coisa nenhuma. Não vejo ninguém bater panela e vestir camisa amarela. Então, é só a corrupção ligada a um partido. O tema da corrupção foi um mero pretexto. O que estava indignando os setores de classe média? As reformas, por sinal muito lights, que o PT estava fazendo. Elas estavam relacionadas à diminuição da distância entre as classes. E os pobres estavam, principalmente, começando a entrar na universidade. A universidade é a base do privilégio da classe média: o acesso exclusivo às fontes de conhecimento prestigioso, que resultará na formação de juízes, professores universitários, economistas, advogados. Os pobres estavam entrando neste caminho. As pessoas se incomodarem com a diminuição desta distância é algo escravocrata entre nós.

EC – Este comportamento, este ódio que o senhor atribui à classe média, ele não perpassa todas as classes? Não é um comportamento disseminado também entre pobres e ricos?
Souza – A segunda parte do livro trata disso. Procuro analisar o que chamo do pacto antipopular do Brasil. Este pacto se forma no começo do século 20, após a abolição. Trato do que chamei de ralé. Por que ralé? Porque é uma parte da população abandonada pela sociedade e explorada pela classe média como mão de obra barata para tração animal. Um exemplo? Uma cozinheira que fica sete horas em pé em frente a um fogão. São pessoas que não foram à escola, não tiveram acesso ao conhecimento escolar que vai dar ensejo ao mercado competitivo. Isto é o que a classe trabalhadora possui em oposição a esses excluídos entre nós. Essa ralé de novos escravos é constituída e mantida sob o ódio, como se fosse culpa dela, como se algum ser humano escolhesse ser pobre e humilhado. E esse é o único tipo de ideia que os pobres recebem. Eles não são instigados a ter opinião própria, não são estimulados a pensar autonomamente. Foi construído entre nós um mecanismo no qual os ricos não possuem só os meios de produção material, mas também os meios de produção simbólica: a informação e o conhecimento. Os pobres possuem um conhecimento superficial, que esconde diversas coisas, e que se transformou em uma grande indústria.

EC – Não é confortável atribuir a responsabilidade exclusivamente às elites?
Souza – Nossa elite é tão saqueadora, abusiva e rapineira como a elite de uma sociedade escravocrata. Ela não é uma elite chinesa, que planeja o país a longo prazo. A elite chinesa aumentou a renda média da sociedade como um todo. Este não é o plano da nossa elite. O plano da nossa elite é estabelecer como vai saquear a riqueza de todas as classes ao máximo a cada ano. É uma elite do saque. Não é como a japonesa, a francesa ou a alemã. Porque as elites, em todo o lugar, ficam, é claro, com a parte melhor do bolo. Mas elas têm planos de longo prazo, até porque esses planos são importantes para que elas se mantenham comendo a melhor parte do bolo. A nossa não. A nossa quer o saque imediato. O pensamento é: ‘como posso explorar ao máximo agora com juros da dívida pública? Como posso ter juros extorsivos, mais altos, que elevam os preços de tudo o que se compra?’. É uma passagem do dinheiro de tudo o que todos produzimos para o bolso de uma meia dúzia. E essa elite montou uma relação de convencimento com a classe média. Para os pobres a gente passa o pau, manda a polícia. A classe média a gente convence. E assim se moldou uma intelectualidade que diz besteiras como a de que viemos dos portugueses, que trata de uma herança ibérica maldita, de corruptos, e de uma autoestima de vira-lata… É uma loucura repetida por grandes intelectuais: Sérgio Buarque, Raimundo Faoro, Fernando Henrique Cardoso, Roberto DaMatta. Esse pessoal todo desenvolveu essa linguagem e ela não fica só nos livros. Ela é repetida na sociedade, nas escolas e, principalmente, na mídia.

EC – Mas, atualmente, não existem muito mais mecanismos que possam barrar esta espécie de retroalimentação de um sistema?
Souza – Vou dar o exemplo da mídia. A mídia não cria ideias. Ela amplifica ideias que são de intelectuais. Isto no Brasil foi montado por uma elite que criou universidades como a USP, que tem jornais que sacralizam essas ideias. Não é uma elite que produz apenas bens materiais. Ela produz bens simbólicos, como informação e conhecimento. Isso é repassado em canais de rádio, televisão e outros meios para a população, pela mesma elite. Então, o que é passado para a população como um todo é essa leitura interessada em definir que a corrupção é dos políticos e do Estado, e que o mercado é um santo, que pode ser definido com um conceito de paradisíaco, um lugar no qual só existe gente boa. E as pessoas acreditam nisso. A sociedade não é contraposta a ideias divergentes. O ser humano aprende e tem opinião autônoma quando é contraposto a opiniões distintas e, a partir da contraposição delas, monta sua própria opinião. Então, eu pergunto: você já viu um programa na Rede Globo que apresente opiniões distintas? Eu nunca vi. Existem concessões públicas que deveriam ser uma esfera de discussão, mas que, na prática, exercem o papel de aprisionamento dos espíritos.

EC – O senhor trata também da ascensão da ‘nova classe média’ nos governos petistas e aponta equívocos no processo. Essa ascensão acirrou ainda mais os ânimos de todas as partes?
Souza – Isso piorou. Porque foi um marketing pouco inteligente da parte do governo. E falo este termo usando um eufemismo, para ser gentil. O que houve: foram criados mecanismos extremamente importantes do aumento do poder de compra, com 70% de aumento real do salário mínimo, 10 milhões de empregos formais, acesso à educação, aumento de alunos negros em salas de aulas. Agora, era preciso construir uma narrativa para essas ações. Era preciso dizer a essas pessoas: ‘olha, conseguimos isso agora, e mais adiante teremos a batalha da educação, a batalha de construir uma matriz econômica para que as pessoas possam ter um emprego melhor’. Não houve nada disso, ou seja, não se construiu uma narrativa. Deixaram a narrativa para a Rede Globo. Ou então para as igrejas pentecostais. Não tenho nada contra elas. Mas elas possuem seus próprios interesses, que não são necessariamente os interesses de uma inclusão política como a que estava sendo realizada. As pessoas precisam de uma narrativa. Os seres humanos precisam de uma interpretação sobre o que estão fazendo. E então, depois, houve quem se surpreendesse com o fato de o povo não sair às ruas (para defender o governo da ex-presidente Dilma Rousseff). Ora, você não explicou ao povo a sua defesa! Foi um erro.

EC – Dizer que milhões de pessoas haviam chegado à classe média também foi um erro?
Souza – Sim, foi um erro. A classe média é a classe do privilégio. Por quê? Porque no capitalismo os capitais principais têm a ver com o capital econômico, que é o mais fácil de ser compreendido, mas também estão relacionados ao capital do conhecimento. No capitalismo o conhecimento é tão importante quanto o dinheiro. Porque não há nenhuma função no mercado ou no Estado que se possa exercer sem conhecimento. O acordado entre a classe média e a elite pressupõe que a elite fique com o capital econômico e a classe média fique com os bons empregos, a supervisão, o controle e a legitimação do sistema: advogados, economistas, juízes e etc., como vemos cada dia mais. Isto está relacionado ao acesso ao conhecimento e o prestígio. A classe média é uma classe privilegiada porque tem um acesso privilegiado a um tipo de capital que não é econômico, é cultural, mas que é extremamente importante porque depois permitirá o acesso aos empregos com salários importantes, reconhecimento e prestígio. Por conta disso, a classe média se apega a esses privilégios e os repassa a seus filhos. Ou seja, é um esquema de reprodução da dominação. Também não houve uma narrativa explicitando esta luta, informando os passos das melhorias e dizendo que isso demanda tempo. Foi um trabalho muito malfeito.

EC – Uma das maiores críticas aos governos petistas é de que só dividiram renda da classe média para baixo, atribuíram quase que exclusivamente à classe média a responsabilidade pelas desigualdades sociais do país e deixaram intocados privilégios e concentração de renda das elites, o que só teria feito aumentar o chamado ‘ódio de classe’. O senhor discorda?
Souza – Não se tocou nas elites por uma razão muito óbvia hoje. Porque, se fosse assim, o presidente Lula não conseguiria sequer assumir a presidência. Essa elite econômica, os grandes bancos, os grandes atravessadores financeiros, os grandes oligopólios, esse pessoal tem o controle, esse pessoal manda em tudo. Nas grandes cadeias de TV podem difamar, podem mandar alguém para o céu ou para o inferno. Podem comprar o Parlamento. Mas o que faltou não foi um acordo inicial. Foi, com o tempo passando, não se ter pensado modos de criação de anteparos para que o povo também tivesse uma educação política melhor. Teria sido muito importante uma televisão pública. Não uma TV estatal. Uma TV pública, onde pessoas com suas posições pudessem expor seu pensamento. Não o que a Globo e a Bandeirantes fazem. Elas colocam cinco ou seis pessoas com a mesma opinião, criam um circo, uma palhaçada de pessoas passando a bola uma para a outra.

EC – A sociedade brasileira é dissimulada? Ela se diz cumpridora das regras e defende a igualdade, mas se norteia pelo princípio de burlar a regra quando ninguém está olhando, ou de mudar a regra conforme o mais conveniente? O senhor diria que a homogeneização não é um objetivo de fato da sociedade brasileira?
Souza – Exatamente. E essa é a nossa falha. Não é a condição da política. Os problemas históricos não vêm de heranças culturais. Eles vêm de alguns processos de aprendizado que algumas sociedades passam e outras não. Estive muito tempo na Alemanha, um país com uma grande mancha histórica, o nazismo. Em decorrência disto, o que aconteceu lá? A sociedade moderna alemã foi moldada contra o nazismo. Isto é estudado em todas as escolas, saem documentários em todos os lugares. A questão não foi jogada para debaixo do tapete. Vamos comparar: a nossa escravidão, a condenação de classes inteiras a uma vida sem direitos e sem dignidade, ao invés de serem amplamente debatidas, quase não são tocadas. Ocorre o contrário, o tema é romantizado em novelas e tal. Ora, deixamos de chamar favelas de favelas e passamos a chamar de comunidades. Não enfrentamos as questões efetivas. Isso faz com que se criem sempre mecanismos superficiais, que não mudam a situação em definitivo. De novo, há uma vinculação com a captura da esfera pública pelo dinheiro. O dinheiro invade as esferas e impõe visões de mundo relacionadas a sua própria reprodução. É uma realidade muito distinta da realidade europeia, mas que se assemelha bastante aos Estados Unidos. Os Estados Unidos são um país muito rico, mas que possuem uma desigualdade e uma violência muito semelhantes às nossas.

EC – O senhor considera a desigualdade dos Estados Unidos semelhante à brasileira?
Souza – Nos Estados Unidos você admite que existem pessoas que tem, que devem ter, uma vida muito pior do que a sua, como os negros, os latinos, os mais pobres. Os Estados Unidos aceitam isso. É algo que ocorre também por conta de um passado escravocrata. Longe de ser o melhor país da terra, como os liberais brasileiros pensam, os Estados Unidos são um país muito complicado, e que vem mostrando isso atualmente. O que acontece lá agora em termos de desindustrialização, de captura do capital financeiro da sociedade inteira, o tipo de reação. Aqui já temos o nosso Donald Trump, a linguagem do ódio, a linguagem não refletida. Estados Unidos e Brasil são muito semelhantes neste aspecto. O que não há são os aspectos da socialdemocracia europeia, onde é claro que existem pessoas que ganham mais e pessoas que ganham menos, mas há uma homogeneização de direitos à saúde e à educação muito mais generalizada do que em países como Estados Unidos e Brasil. Além disso, ninguém faz uma corrupção sistêmica e mais profissional do que os americanos. Nessa última crise enganaram seus clientes, maquiaram balanços de empresas do país inteiro. Ora, se isso não é corrupção, então… E feito de uma forma profissional porque os americanos, via de regra, legalizam a corrupção.

EC – A partir de toda essa genealogia que o senhor recupera, é possível vislumbrar uma sociedade mais igualitária?
Souza – Pode parecer surpreendente, mas estou um pouco otimista. O grau de mentira chegou a tal ponto que não há ninguém tolo o bastante para acreditar. Com exceção da parte fascista da classe média, que é assim de berço, não vai mudar, e agora pode inclusive dizer o que quer de modo aberto. É um pessoal que não vai aprender nunca porque este é o discurso que legitima sua vida e seu ódio. Agora, que o golpe foi um esquema montado, uma mentira para a qual contribuíram as corporações jurídico-policiais, e no qual também entraram os grandes canais de comunicação, isso é flagrante. Esse pessoal está condenado a repetir a mentira. O que não percebem, eu entendo, é que o mundo não é só imposição de interesses econômicos. Não sabem que esses interesses precisam ser legitimados e que essa legitimação hoje é impossível. Como o Lula é condenado sem provas, enquanto permanecem soltas pessoas que efetivamente cometeram crimes documentados e mostrados em todas as redes? É uma injustiça que qualquer pessoa percebe. Ouço isso nas esquinas, nas ruas, na padaria… A operação Lava Jato foi o emissário desta mentira. Agora há o refluxo dela, e espero que consigamos tirar as lições disso e refazer as coisas de um modo melhor. Esse tipo de coisa não pode acontecer em um país democrático. Então, acho que vamos aprender. Sou otimista e acredito que as eleições de 2018 serão muito diferentes das eleições municipais de 2016, que foram manipuladas pela mídia e pela Lava Jato.
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Jessé Souza: “A classe média é feita de imbecil pela elite”
Os extratos médios, diz o sociólogo, defendem de forma acrítica os interesses dos donos do poder e perpetuam uma sociedade cruel forjada na escravidão
A Elite do Atraso – da Escravidão à Lava Jato. De certa forma, a obra compõe uma trilogia, ao lado de A Tolice da Inteligência Brasileira, de 2015, e de A Ralé Brasileira, de 2009, um esforço de repensar a formação do País.


Neste novo estudo, o ex-presidente do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada aprofunda sua crítica à tese do patrimonialismo como origem de nossas mazelas e localiza na escravidãoos genes de uma sociedade “sem culpa e remorso, que humilha e mata os pobres”. A mídia, a Justiça e a intelectualidade, de maneira quase unânime, afirma Souza na entrevista a seguir, estão a serviço dos donos do poder e se irmanam no objetivo de manter o povo em um estado permanente de letargia. A classe média, acrescenta, não percebe como é usada. “É feita de imbecil” pela elite.

CartaCapital: O impeachment de Dilma Rousseff, afirma o senhor, foi mais uma prova do pacto antipopular histórico que vigora no Brasil. Pode explicar?
Jessé Souza: A construção desse pacto se dá logo a partir da libertação dos escravos, em 1888. A uma ínfima elite econômica se une uma classe, que podemos chamar de média, detentora do conhecimento tido como legítimo e prestigioso. Ela também compõe a casta de privilegiados. São juízes, jornalistas, professores universitários. O capital econômico e o cultural serão as forças de reprodução do sistema no Brasil.

Em outra ponta, temos uma classe trabalhadora precarizada, próxima dos herdeiros da escravidão, secularmente abandonados. Eles se reproduzem aos trancos e barrancos, formam uma espécie de família desestruturada, sem acesso à educação formal. É majoritariamente negra, mas não só. Aos negros libertos juntaram-se, mais tarde, os migrantes nordestinos. Essa classe desprotegida herda o ódio e o desprezo antes destinados aos escravos. E pode ser identificada pela carência de acesso a serviços e direitos. Sua função na sociedade é vender a energia muscular, como animais. É ao mesmo tempo explorada e odiada.

CC: A sociedade brasileira foi forjada à sombra da escravidão, é isso?
JS: Exatamente. Muito se fala sobre a escravidão e pouco se reflete a respeito. A escravidão é tratada como um “nome” e não como um “conceito científico” que cria relações sociais muito específicas. Atribuiu-se muitas de nossas características à dita herança portuguesa, mas não havia escravidão em Portugal. Somos, nós brasileiros, filhos de um ambiente escravocrata, que cria um tipo de família específico, uma Justiça específica, uma economia específica. Aqui valia tomar a terra dos outros à força, para acumular capital, como acontece até hoje, e humilhar e condenar os mais frágeis ao abandono e à humilhação cotidiana.

CC: Um modelo que se perpetua, anota o senhor no novo livro.
JS: Sim. Como essa herança nunca foi refletida e criticada, continua sob outras máscaras. O ódio aos pobres é tão intenso que qualquer melhora na miséria gera reação violenta, apoiada pela mídia. E o tipo de rapina econômica de curto prazo que também reflete o mesmo padrão do escravismo.

CC: Como isso influencia a interpretação do Brasil?
JS: A recusa em confrontar o passado escravista gera uma incompreensão sobre o Brasil moderno. Incluo no problema de interpretação da realidade a tese do patrimonialismo, que tanto a direita quanto a esquerda, colonizada intelectualmente pela direita, adoram. O conceito de patrimonialismo serve para encobrir os interesses organizados no chamado mercado. Estigmatiza a política e o Estado, os “corruptos”, e estimula em contraponto a ideia de que o mercado é um poço de virtudes.
"O ódio aos pobres é intenso"

CC: O moralismo seletivo de certos setores não exprime mais um ódio de classe do que a aversão à corrupção?
JS: Sim. Uma parte privilegiada da sociedade passou a se sentir ameaçada pela pequena ascensão econômica desses grupos historicamente abandonados. Esse sentimento se expressava na irritação com a presença de pobres em shopping centers e nos aeroportos, que, segundo essa elite, tinham se tornado rodoviárias.

A irritação aumentou quando os pobres passaram a frequentar as universidades. Por quê? A partir desse momento, investiu-se contra uma das bases do poder de uma das alas que compõem o pacto antipopular, o acesso privilegiado, quase exclusivo, ao conhecimento formal considerado legítimo. Esse incômodo, até pouco tempo atrás, só podia ser compartilhado em uma roda de amigos. Não era de bom tom criticar a melhora de vida dos mais pobres.

CC: Como o moralismo entra em cena?
JS: O moralismo seletivo tem servido para atingir os principais agentes dessa pequena ascensão social, Lula e o PT. São o alvo da ira em um sistema político montado para ser corrompido, não por indivíduos, mas pelo mercado. São os grandes oligopólios e o sistema financeiro que mandam no País e que promovem a verdadeira corrupção, quantitativamente muito maior do que essa merreca exposta pela Lava Jato. O procurador-geral, Rodrigo Janot, comemora a devolução de 1 bilhão de reais aos cofres públicos com a operação. Só em juros e isenções fiscais o Brasil perde mil vezes mais.

CC: Esse pacto antipopular pode ser rompido? O fato de os antigos representantes políticos dessa elite terem se tornado alvo da Lava Jatonão fragiliza essa relação, ao menos neste momento?
JS: Sem um pensamento articulado e novo, não. A única saída seria explicitar o papel da elite, que prospera no saque, na rapina. A classe média é feita de imbecil. Existe uma elite que a explora. Basta se pensar no custo da saúde pública. Por que é tão cara? Porque o sistema financeiro se apropriou dela. O custo da escola privada, da alimentação. A classe média está com a corda no pescoço, pois sustenta uma ínfima minoria de privilegiados, que enforca todo o resto da sociedade. A base da corrupção é uma elite econômica que compra a mídia, a Justiça, a política, e mantém o povo em um estado permanente de imbecilidade.

CC: Qual a diferença entre a escravidão no Brasil e nos Estados Unidos?
JS: Não há tanta diferença. Nos Estados Unidos, a parte não escravocrata dominou a porção escravocrata. No Brasil, isso jamais aconteceu. Ou seja, aqui é ainda pior. Os Estados Unidos não são, porém, exemplares. Por conta da escravidão, são extremamente desiguais e violentos. Em países de passado escravocrata, não se vê a prática da cidadania. Um pensador importante, Norbert Elias, explica a civilização europeia a partir da ruptura com a escravidão. É simples. Sem que se considere o outro humano, não se carrega culpa ou remorso. No Brasil atual prospera uma sociedade sem culpa e sem remorso, que humilha e mata os pobres.

CC: Algum dia a sociedade brasileira terá consciência das profundas desigualdades e suas consequências?
JS: Acho difícil. Com a mídia que temos, desregulada e a serviço do dinheiro, e a falta de um padrão de comparação para quem recebe as notícias, fica muito complicado. É ridícula a nossa televisão. Aqui você tem programas de debates com convidados que falam a mesma coisa. Isso não existe em nenhum país minimamente civilizado. É difícil criar um processo de aprendizado.

CC: O senhor acredita em eleições em 2018?
JS: Com a nossa elite, a nossa mídia, a nossa Justiça, tudo é possível. O principal fator de coesão da elite é o ódio aos pobres. Os políticos, por sua vez, viraram símbolo da rapinagem. Eles roubam mesmo, ao menos em grande parte, mas, em analogia com o narcotráfico, não passam de “aviõezinhos”. Os donos da boca de fumo são o sistema financeiro e os oligopólios. São estes que assaltam o País em grandes proporções. E somos cegos em relação a esse aspecto. A privatização do Estado é montada por esses grandes grupos. Não conseguimos perceber a atuação do chamado mercado. Fomos imbecilizados por essa mídia, que é paga pelos agentes desse mercado. Somos induzidos a acreditar que o poder público só se contrapõe aos indivíduos e não a esses interesses corporativos organizados. O poder real consegue ficar invisível no País.

CC: O quanto as manifestações de junho de 2013, iniciadas com os protestos contra o reajuste das tarifas de ônibus em São Paulo, criaram o ambiente para a atual crise política?
JS: Desde o início aquelas manifestações me pareceram suspeitas. Quem estava nas ruas não era o povo, era gente que sistematicamente votava contra o projeto do PT, contra a inclusão social. Comandada pela Rede Globo, a mídia logrou construir uma espécie de soberania virtual. Não existe alternativa à soberania popular. Só ela serve como base de qualquer poder legítimo. Essa mídia venal, que nunca foi emancipadora, montou um teatro, uma farsa de proporções gigantescas, em torno dessa soberania virtual.



Um resumo das relações sociais no Brasil

CC: Mas aquelas manifestações foram iniciadas por um grupo supostamente ligado a ideias progressistas...
JS: Só no início. A mídia, especialmente a Rede Globo, se sentiu ameaçada no começo daqueles protestos. E qual foi a reação? Os meios de comunicação chamaram o seu povo para as ruas. Assistimos ao retorno da família, propriedade e tradição. Os mesmos “valores” que justificaram as passeatas a favor do golpe nos anos 60, empunhados pelos mesmos grupos que antes hostilizavam Getúlio Vargas. Esse pacto antipopular sempre buscou tornar suspeito qualquer representante das classes populares que pudesse ser levado pelo voto ao comando do Estado. Não por acaso, todos os líderes populares que chegaram ao poder foram destituídos por meio de golpes.




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